sexta-feira, 7 de abril de 2023

Naná - A bruxinha

Capítulo I - Vermelho Pau-Ferro Rubro 

Há uma pequena cabana triangular de madeira em uma clareira na floresta encantada Mato Dançante. Três chaminés pontuam o teto e seu interior é o lar de uma jovem bruxa recém-formada, que, após a cerimônia de conclusão de seus estudos, seguindo a tradição de sua vila, colocou seus pertences mais preciosos em uma mochila voadora de asas e partiu para viver sua própria jornada mágica. Seu nome foj escolhido entre as estrelas e é um segredo que ela guarda como um tesouro. Ela é baixa e magra, com cabelos ruivos ondulados que parecem flutuar em torno de seu rosto. Sempre usa um vestido preto e um chapéu de bruxa preto.  Sua varinha é de madeira pau-ferro rubro, e seu apelido é Naná.

Naná é uma bruxinha que se encaixava perfeitamente na imagem que surge em nossas mentes quando pensamos em bruxas: vestido preto, chapéu pontudo, vassoura e gato preto. No entanto, diferente das bruxas comuns que encontramos em contos assustadores ela é uma bruxinha adorável, como aquelas que encontramos apenas em histórias encantadoras.

Sentada em uma pedra às margens de um lago verde musgo, repleto de algas ondulantes e peixes-camaleão furta-cor, Naná contempla sua varinha mágica, tortuosa e marcada pelos veios vermelhos do pau-ferro rubro. 

Naná deveria estar imersa na prática de feitiços, mas a relação encantada com sua varinha era tudo menos harmônica. De fato, o nome de sua companheira mágica permanecia desconhecido, uma informação que a varinha deveria ter sussurrado em seus ouvidos há muito tempo. Por mais que Naná se esforçasse - pressionando a varinha contra a orelha, dialogando com ela, até mesmo dividindo o mesmo travesseiro e banho - a confidência prometida não se concretizava. Seria possível que ela não tivesse ouvido o sussurro, ou será que a varinha estaria simplesmente se recusando a falar?

Em um momento de distração, a mente da jovem vagueia por pensamentos inquietos, voando até a Magivila - o lar de sua familia. Lembranças vívidas invadem a mente de Naná, evocando o vislumbre dos rostos queridos que um dia habitaram as encantadoras ruas da pequena vila mágica. A cada lembrança, um aperto no coração e a saudade crescente de um tempo que já passou. As memórias se enredam em sua mente, como as raízes de uma árvore ancestral que se aprofunda na terra fértil.

Em suas lembranças, Naná acabara de completar seus doze anos, e sua cabeça estava repleta de expectativa e encanto. Naquela manhã, enquanto ela acordava, toda a sua comunidade se reunia para celebrar o dia da consagração - o Rito Konsekro - um momento sagrado em que jovens bruxos e bruxas recebiam seus instrumentos de poder e iniciavam sua jornada na magia.

Esse era um dia muito especial não só para a bruxinha, como para toda a comunidade bruxa. Exatamente 36 dias após o início do outono, todos os jovens bruxos e bruxas que tivessem completado doze anos de vida mágica - uma contagem que não seguia as regras dos não-bruxos - se reuniam para receber seus instrumentos de poder. Varinhas, amuletos, encantos e poções eram concedidos com cuidado e solenidade, enquanto cada jovem se preparava para iniciar sua jornada rumo ao desconhecido.

Naná fitou o círculo mágico com uma curiosidade ansiosa. Ela usava um vestido negro adornado com um bordado azul contendo o símbolo do Hidroázul, o brasão de sua família. Ao seu lado estavam Karin, seu primo; Lolô, sua amiga de infância; e Deko, o vizinho da tia Rosalina. Todos compartilhavam o mesmo brilho nos olhos e a mesma sensação de que algo grandioso estava prestes a ocorrer.

A solenidade teve início, e a venerável feiticeira, Madame Soraya Dalva, deu início ao ritual acendendo a labareda da fogueira no âmago do círculo. Ela solicitou, então, que cada jovem bruxo dirigisse seus pensamentos para o que ansiava alcançar em suas vidas.

Naná já havia ensaiado em sua mente inúmeras vezes os pensamentos que nutriria nessa hora e todos eles estavam entrelaçados ao elemento aquático, sua fluidez e crucial importância na manutenção da vida. Tudo girava em torno da cor azul, que era transmitida de geração em geração por sua família. Água, rios, oceanos, a sensação de chuva molhando a pele, o líquido vital, o céu azul cintilante, o canário-d'água, o fogo azul, os gotejos reluzentes da cachoeira molhando seu rosto em um dia de verão, a poção azul neon salva-vidas...

Plena em sua determinação de alcançar seus poderes relacionados ao elemento aquoso, ela se lançou a imaginar os mais variados cenários em que poderia se deparar com a água. Estava leve e confiante quando de súbito, as chamas na fogueira central crepitaram e um fragmento de madeira carbonizada lhe atingiu os pés. A dor da queimadura a assustou, e, ao abrir os olhos, deparou-se com brasas ardentes, mais vermelhas que a temerosa cascavel rubi-brilhante. Momentaneamente, sua mente se esqueceu do azul e foi invadida por tons rubros de fogo e cinzas. Foi exatamente nesse momento, tomada pela dor da queimadura e de desvio de seus pensamentos mais sutis que sua nova varinha surgiu à sua frente, flutuando, torta, rígida e vermelha, totalmente em desacordo com o que ela havia planejado para sua vida.

"Agarrem seus objetos de poder", trovejou Madame Soraya com sua voz poderosa. Os feiticeiros obedeceram sem hesitação, cada um segurando seu talismã com firmeza, exceto Naná. Desorientada e atordoada com a visão diante dela, a jovem se viu incapaz de agir. Até esse momento, tudo em sua vida havia sido meticulosamente planejado. Naná era uma mestre em programar cada passo de suas decisões e em segui-los diligentemente. Quando algo saía do curso, ela logo corrigia. Mas agora, diante de uma situação incontrolável, a jovem recém bruxa permaneceu imóvel como uma pedra.

Perante os olhos de Naná, a varinha cintilava em rubro intenso, seus veios vermelhos pulsando como o coração de um animal selvagem. De repente, todos os pensamentos da jovem foram varridos como folhas ao vento e ela sentiu-se irresistivelmente atraída pela varinha. Não conseguindo explicar o motivo, estendeu a mão e a agarrou. Nesse instante, uma onda de energia percorreu seu corpo e a fez sentir viva como nunca antes. Por um breve momento, ela sentiu o calor da chama central, o brilho da varinha e a vida pulsando em suas veias. Esse momento que pareceu durar uma eternidade se extinguiu num piscar de olhos: o calor, o brilho, a energia. O ritual havia terminado e Naná estava estirada na grama, segurando sua nova possessão, atônita. Todos ao redor bateram palmas, mas ela não conseguiu se mover, ainda imersa em sua própria surpresa.